domingo, 16 de setembro de 2018

RELATO

Relato

A noite então, soltou-se e deixou vir a tona a pessoa que era. Mulher romântica que destrói agendas, bota fogo em cartas e acende velas. Naquela noite estava mesmo se despedindo da incoerência com a qual viveu. Tentou vencer a vida, mas foi inútil sua força contra algo tão forte: a vida. Não tinha flores, flertes e nem era mais “a dona da noite”. Estava mais para uma balada assim meio” acende o último cigarro”, do que a velha e doida menina do rock and rool, Ramones e os super outros e os muito mais e tal. Era apenas ela e uma música qualquer que o surfle do velho aparelho escolheu. Tinha umas pontas pelo chão no passado. Hoje apenas as baganinhas do cigarro barato e uma água ardendo de tão só. Então, estava montado o cenário de sua inconformada e arriscada paixão por nada. Qualquer fajuto, cafuçu ou malandro era agora um rei. Quando uma pessoa morre não sobra nada, afirmava ela insatisfeita com o corpo já flácido e os seios tombados sobre o peito. Quando a pessoa morre não tem anjo, nem nada. É só um breu e uma ausência total de realidade. A fumaça do incenso expira assim como a vida, dizia ela na janela esperando que o felino preto, velho, sujo e miserável viesse dormir em sua varanda. Estava já, morta e não sabia. Esperava apenas a ruptura final do vínculo. Uma veia que explodiria ou um engasgo com a própria língua. Traçou um testamento. Deixou o Pearl da Janis para vizinha do lado e os Buarques para a amiga da enfermaria. Num súbito caiu para trás com um engasgo tenebroso e fatal despedindo-se da vida.  Estava tão saturada, esfomeada de fim e doida pra cessar que nem se quer forçou a barra do resistir. E no seu coração uma única de devota esperança: Que depois da vida não exista nada mesmo. Nada. Nem um mínimo ponto discreto de lembrança do que havia passado aqui. 

(Markus Marques)