O corpo não tem memória, ele é
memória, como disse Grotowski. Trabalhar com estas cartas é, sobretudo e
antes de mais nada, preparar corpo de Mariana não para que ele diga,
mas para que ele permita dizer. Não mostrar o que ele é, mas revelar o
que, por meio dele, Mariana queria ser. Ser Mariana é se desnudar, se
revelar. Essa nudez pede generosidade e coragem. Uma máscara pode
mesquinha e covardemente esconder a vergonha, mas Mariana nunca possuiu
uma. Tudo o que Mariana teve foi seu corpo e dentro dele um coração. O
coração de João. O ser humano pode se esconder atrás do corpo, de
maneira a deixá-lo belo, porém Mariana nunca conheceu tais artifícios.
Por meio do corpo podemos revelar o que somos e sentimos. Mariana
descobriu por meio de sua solidão o sentido reverso das coisas. Ela não
diz o sentido, nos permite descobrir que o sentido não está em outro
lugar se não em nós mesmos. Mariana e sua arte abrem, portanto, caminhos
que nos permitem entrar em contato com nossa própria percepção
profunda, com algo que existe em nós e está adormecido, esquecido. O
DESEJO DE PERTENCER A ALGUÉM. CARTAS PORTUGUESAS não é senão uma viagem
para dentro de nós mesmos, um reatar contato com recantos secretos,
esquecidos, com lembranças de quando erramos. A busca de Mariana acaba
por ser a incontestável tentativa de reavivar a memória que lhe resta.
Perdida a memória, nada mais terá Mariana. Nada guardou para si. A
verdadeira dor de Mariana consegue esculpir no corpo suas ações físicas
no tempo e no espaço indo de encontro ao
espectador, que assiste de mãos limpas, a febre de seus desejos. Mariana pede a si mesma para cessar, porque sozinha não consegue.
Esta é a minha visão de CARTAS PORTUGUESAS.
Markus Marques
(Este
post é uma singela homenagem à Samira Reis, Mariana Freitas, Luiza Lima
e Olivia Cursage. Atrizes pelas quais tenho grande prazer em dirigir,
confiar uma barra pesada como esta e para as quais temo ter muito pouco a
oferecer).